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[Leitor Escritor] "Walter White seria tão poderoso se as drogas fossem descriminalizadas?"


Por Lucas Franco    


Séries, livros e filmes com tramas que envolvem narcotraficantes poderosos, além de entreterem o público, servem para apimentar ainda mais o debate sobre descriminalização da produção, venda e consumo de drogas. Aliás, apimentar não, já que Walter White proibiu Pinkman de colocar pimenta na metanfetamina desde o primeiro episódio.

Enquanto refletimos sobre o tema ou lamentamos a tentativa de trocadilho no parágrafo anterior, as drogas vitimizam milhares de pessoas em todo o mundo. Segundo estudo publicado pelo Huffington Post, 17.465 pessoas morreram de overdose de drogas ilícitas nos Estados Unidos em 2014. Já no Brasil, em 2010, o número de óbitos pela mesma causa foi 22,5 mil, o que na época representou um crescimento de 58% em comparação a 1996, segundo informações do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).

Estatísticas não devem ser desprezadas, mas será que o número de óbitos por overdose aumentaria com a descriminalização? Há quem diga que sim, há quem diga que não. Experiências de descriminalização do consumo funcionaram em Portugal e no Uruguai. Segundo o Centro Europeu de Monitoramento para Drogas e Dependência de Droga (EMCDDA), a prevalência de adultos que já tinham consumido em Portugal era de 12% em 2007 e caiu para 9,5% em 2012, enquanto entre os jovens e adolescentes caiu de 17,4% para 14,5% no mesmo período. A lei entrou em vigor em 2011. No Uruguai, a descriminalização se restringiu à maconha e promoveu o menor aumento de consumo em 14 anos, de 8,3% em 2011 para 9,3% entre junho de 2014 e junho de 2015, apontou o Conselho Nacional de Drogas (JND), órgão ligado à presidência da república uruguaia.

Por outro lado, em regiões do globo que apostam na repressão, o número de mortes por overdose se soma ao de homicídios na guerra contra o tráfico.

[ATENÇÃO, SPOILLER! SE VOCÊ NÃO VIU BREAKING BAD ATÉ O FINAL, POR FAVOR, NÃO DESÇA!]

Do total de 247 mortes em Breaking Bad, somadas todas as temporadas, apenas uma foi decorrente do consumo de droga, embora Jane Margolis tenha engolido o próprio vômito, o que não se configura em overdose. A maioria das mortes ocorreu no último episódio da segunda temporada, quando o choque de dois aviões vitimou 167 pessoas. A causa indireta do acidente aéreo foi o abalo emocional do pai de Jane, que não poderia ter voltado a trabalhar como controlador de vôo tão pouco tempo após a morte da filha, principalmente em um tipo de oficio que requer tanta concentração e que envolve tanto risco.

Subtraídas as mortes do acidente aéreo, que distorcem o número total, foram 80 mortes. Das 80, apenas oito* não se deram por motivos de disputa por poder, briga interna de traficantes e queima de arquivo. Ou seja, foram 74 mortes que poderiam ser evitadas se o mercado das drogas não funcionasse de maneira clandestina, com disputas de grupos que formam um estado paralelo com suas próprias regras. Quem defende a descriminalização da produção, venda e consumo das drogas alega que esses grupos não teriam tanto poder se não fossem munidos com toda a grana da venda das drogas.

A descriminalização poderia enfraquecer personagens de ficção ou criminosos do mundo real. É difícil imaginar Pablo Escobar, Fernandinho Beira-Mar, Zé Pequeno (Cidade de Deus) e Baiano (Tropa de Elite) exercerem tanta influência sem o tráfico de drogas. Nenhum outro produto contrabandeado poderia colocá-los em um pedestal tão alto. Mas a mesma lógica não pode ser aplicada a Walter White, o “herói” mais vilão (ou vilão mais “herói”).

Walter White estragaria até um utópico “mundo ideal”

Ainda que a produção de drogas fosse normatizada, Walter White não aceitaria ser o “cozinheiro” de uma grande indústria farmacêutica.

White não se contenta com “pouco”. Ganhar milhões de dólares para produzir metanfetamina para Gus não seria suficiente por muito tempo, mesmo que Pinkman não “estragasse” tudo. Não se trata de dinheiro. O ego do imperador de Albuquerque é tão grande que o mundo precisaria se curvar diante dele. Caso contrário, a subversão seguiria, sem limites. Estar com a família tranquilo, em uma mansão com tobogã e uma Ferrari na garagem não seria suficiente se ninguém reconhecesse o mérito de suas conquistas. Portanto, nada de cozinhar às escondidas. O Estado, no seu ponto de vista, arrancaria seu suado dinheiro, como fizeram Gretchen e Elliott, ainda que ele se tornasse bilionário. Sempre é possível ter mais. E mais. E mais. Nenhuma inspeção sanitária poderia interferir nos seus processos químicos. A cozinha é sagrada, só deve entrar quem ele autoriza, e ninguém deve mudar a fórmula, ainda que seja para se adequar às normas do Ministério da Saúde. Não entrar de acordo com todos esses tópicos seria uma declaração de guerra do Estado ao protagonista de Breaking Bad.

Walter White é um personagem que poderia existir em qualquer mundo, em qualquer cenário. Nada poderia adiar seu surgimento. É um fenômeno apocalíptico. Insaciável e desinteressado pelo bem comum. Tampouco é uma tarefa fácil compreende-lo, saber o que afinal de contas quer o reprimido homem que nunca se sentiu realizado até começar a produzir de metanfetamina.

Em um cenário em que produção, venda e consumo de drogas fossem descriminalizados, Pablo Escobar não seria tão poderoso. Ainda que vendesse clandestinamente a cocaína, a concorrência com laboratórios autorizados pelo Estado enfraqueceria muito o colombiano, que com menos dinheiro não teria o mesmo poder. A cocaína de Escobar não seria especial ao ponto de fazer usuários se manterem fiéis ao produto se outro produto similar estivesse disponível na farmácia. Ainda que a taxação de impostos e outros fatores aumentassem o preço da “droga legalizada”, não seriam poucos os consumidores que pagariam mais para não precisar lidar com traficantes ou correr o risco de terem produto apreendido pela polícia.

Por outro lado, nem a descriminalização das drogas diminuiria o consumo do cristal azul de Heisenberg. A não ser que um laboratório farmacêutico, como a Bayer, encontrasse um “cozinheiro” no nível de White, que conseguisse repetir a fórmula e com isso desbancar sua concorrência. Sem freios morais, no entanto, o ex-professor de química seria capaz de matar alguém que ameaçasse seu império.

Os clientes não se importavam com o preço da metanfetamina de White. Tampouco com os riscos que envolviam sua compra. Afinal de contas, ela era a mais pura de todos os tempos e valia a pena o risco. Nenhuma repressão policial ameaçou o cartel ou Gus e a situação só se inverteu com a explosão do asilo, que expôs toda a rede que tinha a Pollos Hermanos como ponta do iceberg, e posteriormente o descuido de Walter em deixar o livro assinado por Gale em seu banheiro. Com White na cozinha e na gestão do império, o mundo sempre correria risco, independentemente de a estratégia ser descriminalizar as drogas ou aumentar a repressão policial. Apenas seus descuidos o enfraqueciam. Quanto mais Walter White cozinha, mais o mundo sangra e chora.

*  “Das 80, apenas oito* não se deram por motivos de disputa por poder, briga interna de traficantes e queima de arquivo”, foram elas as mortes de Gonzo (capanga de Tuco Salamanca, que morreu de maneira acidental), Tuco Salamanca (morto por Hank, única morte causada por um policial em atividade – Mike não atua como policial), homem morto em loja de conveniência por viciados que roubaram caixa eletrônico, Spooge (morto pela própria esposa, que esmagou sua cabeça com caixa eletrônico após ser xingada), Jane (após consumo de drogas, engoliu o próprio vômito), Peter Schuler (executivo da Madrigal, que se suicidou ao ser procurado pela polícia) e os dois policiais mortos pelos traficantes nazistas, Steven Gomez e Hank Schrader, mortos em tiroteio, portanto, não se encaixam no perfil de disputa por poder, briga interna ou queima de arquivo (embora a guerra contra o tráfico seja uma das maiores causas de mortes de policiais brasileiros).    

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